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Writer's pictureKatherina Cordás

Enchendo linguiça: uma breve história da charcutaria

Updated: Aug 25, 2019

Tempo de leitura: 4 minutos.

The Grocer's Encyclopedia, 1911.
The Grocer's Encyclopedia, 1911.

Lembro de comer fuet quando era criança, como se fosse uma dessas balas bem artificiais, compridas e babadas. De andar por aí segurando na mão aquele salaminho de um lado pro outro, dando "pequenas" mordidas até sobrar só o fiozinho. Os “adultos” não gostavam muito e um culpava o outro pela “má criação” ao influenciar as crianças a gostarem de todas as coisas boas e, principalmente, caras – ainda mais no final dos anos 80. Acho que este é o "mal" de nascer em uma família catalã, pelo menos com a minha era assim... Eu e meus cinco primos fomos criados por catalães extremamente patriotas e (bastante) saudosos que, querendo manter viva a chama #viscacatalunya, nos fizeram crescer torcendo pro barça, escutando Montserrat Caballé (ahh ela e o Freddie Mercury <3) e comendo botifarras do Pirineus nos aperitivos dos longos e barulhentos almoços de domingo.


Lardo, jamón, bottarga, embutidos do mar, queijo de cabeça de porco... a charcutaria engloba os preparos de qualquer tipo de carne, por métodos de salga, conservação, cura, fermentação, cozimento, desidratação e defumação, normalmente para fins de preservação. E ela nasceu exatamente por esta necessidade: prolongar a vida dos alimentos – assim como muitas das melhores comidas - e foi consumida pelas mais diversas civilizações ao longo da história do homem.

Preparo do porco. Relevo do século I. Museu do Vaticano, Roma.
Preparo do porco. Relevo do século I. Museu do Vaticano, Roma.

Não demorou muito para que o homem pré-histórico percebesse a ação do sal, da água, do sol e do vento para conservar alimentos. Aparentemente esta percepção se deu há mais de 10 mil anos de uma forma muito simples: observando a natureza (algo tão raro hoje em dia).


Boudin, chorizo, morcilla, sanguinaccio, sangueira, butifarra, blutwurst, black pudding... os nomes e receitas são muitas, mas as primeiras morcelas aparentemente foram criadas na Grécia Antiga, por um tal de Afronitas e descritas no compilado "O Banquete dos Eruditos" (ou dos Sábios) escrito por Ateneu de Náucratis, no início do século III. A Odisséia de Homero também cita um tipo de intestino recheado de sangue e gordura que era assado no forno, outro ancestral da morcilla. Dizem também que Nabucodonosor II (634 a.C. - 562 a.C.), o suposto rei que construiu os jardins suspensos da Babilônia, era conhecido por gostar de diversos tipos de salames.


Detalhe de Sausage Making. David Teniers, 1651.
Detalhe de Sausage Making. David Teniers, 1651.

A charcutaria também desempenhou um importante papel na formação dos grandes impérios: era o alimento perfeito para os exércitos, que ficavam peregrinando ao longo de anos.


No império romano a comida ganhou uma sofisticação que não existia até então. Isso aconteceu principalmente pelas diversas influências que os romanos absorveram em suas andanças pelo mundo, através das quais aprenderam a dominar diversos tipos de técnicas culinárias, como preservar animais, vegetais e lácteos.


Algumas das primeiras receitas de embutidos do mundo estão no livro "De Re Coquinaria", um compilado de receitas romanas por Marcus Gavius Apicius, que viveu em Roma por volta de 25 a.C., como as receitas de salsicha (lucanicae) e linguiça (farcimina).



Presunto: do latim, prae exsuctus, “privado de liquido, desidratado”.

No "Codex Justinianus", livro de legislação do imperador bizantino Justiniano I, no século VI, todos os legionários deveriam receber uma porção de bacon de três em três dias para garantir energia e força para as tarefas do dia a dia.

Ilustração da produção de salsichas. Século XIV, Bélgica.
Ilustração da produção de salsichas. Século XIV, Bélgica.

Mas foi na Idade Média que a charcutaria realmente se desenvolveu. Isso provavelmente se deve tanto pelo aprimoramento da domesticação do porco, quanto pelas técnicas de preservação e cura de carnes que se desenvolveram consideravelmente.


Em meados do século XIII foi registrado na Itália os porcatores, salaterris, salaroli ou lardaroli, dependendo da região, que consistiam na profissão de cortar e salgar carne de porco. Os primeiros estatutos dos salaroli, registrado em Bolonha em 1250, autorizavam o profissional a vender carnes e toucinhos salgados, óleos, queijos, legumes, cereais, sebo e velas.

Giuseppe Maria Mitelli. Gioco Di Cuccagna, 1691. Detalhes: A Mortadela e Lardarolo.


Os Trabalhos do Mês (The Labours of the Months), cena de dezembro. The Golf Book. Bruges, Bélgica, 1520-1530.
Os Trabalhos do Mês (The Labours of the Months), cena de dezembro. The Golf Book. Bruges, Bélgica, 1520-1530.

A palavra Charcutaria nasceu no século XV, do francês, chair (carne) e cuit (cozido), criada para identificar as lojas que vendiam produtos de porco e miúdos diversos. Estas lojas receberam suas primeiras regulamentações parisienses no ano de 1476, descritas como lojas de “cozer carne e a fazer salsichas, a vender banha de porco e outras carnes e produtos de talho” sic. [1]


O processamento do porco em uma gravura do século XVII.
O processamento do porco em uma gravura do século XVII.

A Meat Stall with the Holy Family Giving Alms. Pieter Aertsen, 1551.
A Meat Stall with the Holy Family Giving Alms. Pieter Aertsen, 1551.

No Brasil os guaranis já usavam o moquém, uma grelha de madeira, para conservar peixes e carnes por defumação, como o toucinho de fumeiro, que podia ser salgado ou não antes do processo.


Os portugueses faziam bastante uso do sal na culinária, provavelmente por serem um povo que dominava a pesca e explorava diversas salinas. Com isso, quando chegaram no Brasil, novas técnicas e preparos foram incorporados na culinária local, como a conserva em banha de porco - ou o famoso porco na lata.


Il Salumaio. Estampa do século XVIII, Bolonha,Itália. Arquivo do estado de Parma.
Il Salumaio. Estampa do século XVIII, Bolonha,Itália. Arquivo do estado de Parma.

Pela intensa diferença climática, os processos de cura demoraram mais que o esperado, o que criou na época uma considerável importação de embutidos do velho mundo - tamanho o gosto pela coisa!


Já a carne-seca ou o charque, chegou no país através dos espanhóis que difundiram a receita pré-colombiana de charqui (em quéchua), principalmente no nordeste e no sul do país.






Jamón Ibérico de Bellota
Jamón Ibérico de Bellota

Fuet Catalão
Fuet Catalão





Bibliografia

História da Alimentação -vol. 2 – Da Idade Média aos tempos actuais / Jean-louis Flandrin, e Massimo Montanari, Terramar, 1996.


A culinária caipira da Paulistânia: a história e as receitas de um modo antigo de comer / Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos. São Paulo: Três Estrelas, 2018.

Embutidos: da sobrevivência à gastronomia / Breno Raigorodsky. São Paulo: Editora Senac, 2011.

História Da Alimentação No Brasil /Luis Da Camara Cascudo. São Paulo: Ed. da Univ. de São Paulo, 1983.

Maiali Si Nasce Salami Si Diventa / Gabriele Cremonini e Giovanni Tamburini. Bolonha: Pendragon, 2010.

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