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Almocei esses dias no Ugue’s, tradicional restaurante de 1968 na Santa Cecília, em SP, com jeitão de boteco e comida boa e barata. O PF do Ugue’s atrai fiéis há muitos anos e com razão. Os pratos feitos são bem caprichados, saborosos e a preço justo. Filé a parmegiana com fritas, picanha com farofa, a famosa feijoada às quartas e sábados e o clássico filé mignon especial com fritas, arroz, feijão e ovo (meu favorito). Tudo isso servido com pão, maionese e vinagrete, que fazem as vezes de couvert.
Os Pratos Feitos existem desde o começo do século XIX e estão nas mesas de todo país. O brasileiro adora um PF, aquele prato pronto, já montado, feito com produtos sazonais e tradicionais de cada região. O PF não engloba, como muitos pensam, apenas pratos com arroz e feijão, mas diversos alimentos de fácil acesso e que são de gosto popular em cada parte do Brasil, como um reflexo da cultura de cada lugar. O concurso promovido pela empresa Ticket para eleger o melhor PF do Brasil, é uma boa demonstração disso. Nele concorrem PFs compostos por costela no melaço, vatapá vegetariano e língua de boi com arroz de castanhas, entre outros. A variedade de Pratos Feitos pelo Brasil afora é enorme. Abaixo algumas das receitas que mais aparecem nos PFs por aí:
Sudeste: Feijoada
Muitos pensam que a feijoada nasceu dos escravos, mas a história não é bem assim. As carnes usadas na feijoada, consideradas menos nobres no Brasil, são partes apreciadas pelos europeus e que não chegavam às senzalas (além disso, muitos escravos eram muçulmanos e por isso não consumiam carne de porco).
Este tipo de prato (caldo rico feito com carne e legumes), já era preparado no Império Romano e com o decorrer do tempo, ganhou diversas versões na Europa como o cassoulet na França ou o cozido em Portugal. O preparo da versão portuguesa do prato, ganhou o gostinho brasileiro, com o acréscimo do feijão preto (originário da América do Sul) e a farofinha feita da mandioca brasileira. Mas a feijoada como conhecemos hoje só ficou famosa como prato nacional por conta dos modernistas (primeira metade do séc. XX) que, em seu movimento antropofágico, buscavam símbolos que transmitissem a brasilidade e que construíssem uma identidade nacional.
Norte: Farinha e Açaí
O açaí, fruto de origem amazônica, é um alimento saboroso, nutritivo e versátil, visto de formas bem diferentes ao redor do país. No sudeste, responsável pelo consumo de 70% do açaí produzido no Pará para outros estados, ele é consumido doce, com guaraná, banana e granola. No Norte ele está diariamente nos pratos salgados, é consumido fresco, acompanhado de farinha de mandioca, arroz, peixe, carne seca ou camarão.
Centro-Oeste: Arroz de pequi
Fruta típica do cerrado brasileiro, o nome “pequi” tem origem no Tupi e significa “pele espinhenta” por conta de seus minúsculos espinhos. Com cor amarelada, sabor e aroma bem característicos, era muito usado na cozinha indígena, desde início do século XVIII. Com frango, carne-seca, sorvete, licor e principalmente no arroz, é o prato queridinho da cozinha sertaneja.
Nordeste: Carne de sol
Também chamada de carne de vento e carne do sertão, a carne de sol é um sucesso em todo o país. A técnica de curar os alimentos foi introduzida pelos portugueses no século XVII e incorporada no Nordeste para armazenar a carne bovina, através de um processo bem rústico de salga e de secagem ao sol. Este processo ajuda a conservar os alimentos por mais tempo, mudando sua textura e sabor. No Brasil temos 3 tipos mais importantes de carnes curadas, que se diferenciam apenas pelo processo: A carne de sol, típica do Nordeste, seca mais rapidamente com o clima semi-árido da região, formando uma fina casca que mantém o interior da peça bem úmida. A carne seca, típica da região norte é preparada com mais sal e é bem mais desidratada que a de sol. Já o Charque, típico do Rio Grande do Sul, foi produzido por um português em 1777 depois de ter comido carne seca no Ceará. Ele adaptou a receita para aproveitar o gado que era usado apenas para a extração de couro. Normalmente a carne para o charque tem mais gordura e é preparada com mais sal e com mais tempo dessalgando e curando.
Sul: Carnes
A região sul do brasil recebeu muita influência dos países vizinhos com que faz fronteira: Argentina, Paraguai e Uruguai. Esta aproximação trouxe aos sulistas a paixão pela carne, que é a estrela da refeição diária desta região. Seja como churrasco, barreado paranaense (cozido de um ou mais tipos de carne bovina com alho, cebola, toucinho, pimenta e cominho), ou arroz carreiteiro (mistura de arroz com charque, alho, cebola, tomate e cheiro-verde que tem este nome porque era originalmente preparado pelos carreteiros – que transportavam as cargas puxadas por bois).
Os primeiros restaurantes do Brasil surgiram com a vinda da família real em 1808.
A corte com hábitos europeus, ingredientes importados e munida de seus chefs – muitos deles antigos funcionários de franceses decapitados na revolução francesa, trouxe costumes alimentares para a colônia, criando novas demandas e ritmos de trabalho.
Com a urbanização, as grandes distâncias entre casa e trabalho foram aumentando, criando uma busca pelo comer na rua. Os homens solteiros que vinham para cá sem suas famílias, também acabavam indo atrás de comida e companhia fora de suas casas.
A corte comia em restaurantes e hotéis que proporcionavam uma culinária afrancesada para os portugueses sedentos da cozinha europeia. Já os trabalhadores e operários buscavam locais mais simples, como botecos e botequins que serviam uma comida caseira já definida e empratada. Assim nasceu o Prato Feito, esta comida diária, caseira e honesta, feita para matar a fome em meio a jornada.
Alguns restaurantes se mantém firmes e fortes desde aquela época:
Leite, Recife (PE), 1882
Restaurante em funcionamento mais antigo do país, mantém quase o mesmo cardápio desde que abriu. Tem ar aristocrático, pratarias e garçons de terno branco. No século XIX era frequentado pela alta sociedade pernambucana – intelectuais, políticos e senhores de engenho. Passaram por lá Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Orson Welles, Juscelino Kubitschek , Jânio Quadros e Gilberto Freyre tão habitue, que ganhou um prato com seu nome.
Foi um dos primeiros restaurantes do Brasil, em 1960, a permitir a entrada de mulheres desacompanhadas! O carro chefe são os frutos do mar, principalmente o bacalhau, e a tradicional sobremesa pernambucana, chamada cartola: queijo coalho ou de manteiga, derretido sobre banana frita, com canela e açúcar. O doce nasceu nas casas grandes dos engenhos e em abril de 2009 foi reconhecido como Patrimônio Imaterial de Pernambuco.
Café Lamas, Rio de Janeiro (RJ), 1874
Um dos mais antigos do Rio, era ponto de encontro da boemia carioca. Entre seus frequentadores assíduos estão Oscar Niemeyer, Manuel Bandeira, Juscelino Kubitschek, Sérgio Buarque de Holanda, Cândido Portinari, Getúlio Vargas, Monteiro Lobato, Oswaldo Aranha, Ruy Barbosa, Machado de Assis, Olavo Bilac, Emílio de Meneses, João do Rio e por aí vai... É citado na música Rio Antigo, interpretada por Alcione e por Chico Buarque, além de ter servido de inspiração para o livro de contos “Salvador janta no lamas” de Vítor Giudice. O prato da casa é o Filet Mignon que, prometem, ser o melhor da cidade.
Carlino, São Paulo (SP), 1881
O mais antigo de São Paulo, foi fundado em 1881 no Largo do Paiçandú por um Toscano que servia a tradicional comida italiana. Mudou algumas vezes de endereço, hoje está na R. Epitácio Pessoa. Entre os carros chefes da casa estão o polpetone de picanha com nhoque, ragu de ossobuco com pappardelle e cabrito com polenta.
Rio Minho, Rio de Janeiro (RJ), 1884
Famoso pelos frutos do mar, fica dentro de um prédio tombado pelo Patrimônio Histórico na famosa Rua do Ouvidor – a mais importante da capital fluminense no século XIX. Seu cliente mais assíduo foi o mega intelectual Antônio Houaiss (1915-1999), que ia direto na cozinha dar sugestões. O prato mais famoso do lugar é a sopa Leão Veloso, atribuído ao ministro Pedro Leão Veloso (1887-1947), que depois de uma ida à França, trouxe a receita da bouillabaisse: sopa típica de marseille, feita com pescados, especiarias e ervas e que é cozida ora bouille (alta fervura), ora baisse (baixa fervura).
Bar Luiz, Rio de Janeiro (RJ), 1887
Provavelmente a cervejaria mais antiga do país, chamada originalmente de Zum Schlauch (do alemão: mangueira - como referência ao barril de cerveja) foi fundada por um filho de suíços em 1887. O nome mudou para Bar Luiz quando em 1942, com a Segunda Guerra Mundial, alguns estudantes tentaram destruí-lo achando que o nome em alemão era uma homenagem a Hitler. O bar se salvou por conta do músico Ary Barroso que esclareceu a confusão. Mesmo assim, precavido, o dono do bar se naturalizou brasileiro e mudou de Ludwig para Luiz.
O Prato Feito é uma prática em todo país. É um reflexo de onde você vive, da sua identidade cultural, dos ingredientes, costumes e preferências da sua região. É um jeito de manter uma constância no dia-a-dia maluco de viver na metrópole, cada dia mais inconstante. Afinal, não importa o que aconteça, quarta feira tem sempre feijoada no Ugue’s.
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