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A alma da comida: temperos, especiarias e suas histórias

Updated: Nov 25, 2018

tempo de leitura: 7 minutos.

Dëlika no Mercado de Pinheiros
Dëlika no Mercado de Pinheiros

O Mercadão de Pinheiros é um dos meus lugares favoritos em São Paulo para comprar temperos. Ele foi inaugurado em 1910 e era conhecido como Mercado dos Caipiras por reunir produtos do interior do Estado. Seus 40 boxes possuem as mais diferentes variedades de condimentos. Alguns dos mais interessantes são os do Instituto ATÁ, do Chef Alex Atala, que representam os cinco biomas brasileiros: Caatinga e Cerrado, Mata Atlântica, Amazônia e Pampas. Por lá está a deliciosa Pimenta Jiquitaia Baniwa, que é o primeiro tempero tradicional brasileiro com selo de origem controlada. Jiquitaia em Tupi quer dizer farinha de pimenta e sal, o que caracteriza esta especiaria que é seca no sol, depois moída no pilão e misturada com sal - virando um pó ocre, complexo e extremamente picante. A sensação do ardido porém passa rápido por não ter nenhum óleo, o que causa o prolongamento do sabor na maioria das pimentas.


Outro box enlouquecedor é a delicatessen Dëlika. Além dos deliciosos embutidos produzidos ali mesmo, as paredes do lugar são repletas de potes de vidro exibindo os mais diferentes temperos vindos do mundo todo como kümmel, semente de endro, zimbro e feno-grego.


No centro da cidade, outro lugar ótimo para ir à loucura com os temperos é a Zona Cerealista, composta por diversas lojas e empórios ao longo da Avenida Mercúrio e da Rua Santa Rosa, do lado do Mercado Municipal. Apelidado pela chef Helena Rizzo, do restaurante Maní, como o “parque de diversões” da comida, suas ruas são lotadas de pessoas sedentas pelos mais diversos alimentos, vendidos a granel e com bastante variedade. Muitas de suas lojas também vendem seus produtos online, evitando a muvuca mas perdendo a diversão de desbravar sabores.

Os temperos ou condimentos são substâncias que acrescentam sabor, aromas ou cor aos alimentos. Eles podem ser Especiarias ou Ervas.


Especiarias são uma categoria difícil de definir. Cozinheiros, botânicos, historiadores e químicos já tentaram encontrar uma definição que justifique incluir tanta variedade em um só grupo. Normalmente são cascas, raízes, botões de flores e resinas desidratadas que crescem em climas tropicais e são bem mais caras que as ervas. As ervas normalmente são folhas verdes, herbais, aromáticas e frescas que nascem em climas mais amenos.


As especiarias foram usadas ao longo de toda a história da humanidade. Os egípcios já usavam cominho e anis em 3500 a.C. para temperar suas comidas e embalsamar seus mortos. Em 2000 a.C. a pimenta em grãos representava um grande negócio entre a Índia e o Oriente Médio. A China importava enormes quantidades de cravo no século II a.C.. E até na Bíblia elas são citadas, na história da viagem da Rainha de Sabá até a Etiópia onde foi acompanhada por diversos camelos carregados de especiarias.

Cena de mercado em Patna, Índia. Pintura indiana, autor desconhecido,  c. 1800. Victoria and Albert Museum, Londres.
Cena de mercado em Patna, Índia. Pintura indiana, autor desconhecido, c.1800. Victoria and Albert Museum, Londres.

Os povos árabes desempenharam um enorme papel na história destes temperos, controlando sua comercialização por 5.000 anos e eventualmente exportando-os para a Europa. Os europeus ficaram tão apaixonados pelos novos sabores do Oriente que, alguns séculos depois, na tentativa de achar a nascente das especiarias (a Índia), acabaram descobrindo a América e com ela novos temperos como pimentas, chocolates, aroeiras, ruibarbo entre muitas outras.


Cada especiaria possui uma origem, sabor, uso e histórias diferentes. Conheça algumas delas:

Açafrão

Originário do Sudoeste Asiático, o açafrão aparece na Bíblia, na Ilíada de Homero (século VIII a.C.) e na Eneida de Virgílio (século I a.C.). Era muito usado por monges budistas para tingir suas roupas (sendo substituído posteriormente por cúrcuma, que era mais barata). Foi introduzido na Espanha em 960 d.C. pelos árabes, tornando-se parte essencial da culinária do país. O livro de culinária medieval francês Le Viandier de Taillevent (c. 1300 d.C.) tem diversas receitas com açafrão, como o ganso com pasta de gemas de ovos, açafrão e mel. Hoje em dia a Espanha é um dos maiores produtores da especiaria no mundo, principalmente na região La Mancha. Seu preço é comparado ao valor do ouro, pois é retirado dos estigmas de flores da planta Crocus sativus, da família das Iridáceas, que permanecem floridas por apenas algumas semanas no Outono, sendo super delicadas e apenas possíveis de colher a mão. Considerada a especiaria mais cara do mundo, tornou-se super elitizada. Por sorte, apenas um pouquinho dela é necessário para dar intenso sabor às comidas. Com gosto floral é muito usado em frango, coelho, ovos, batata, arroz, pêssego, além de ser o principal ingrediente da paella espanhola.

Flor do Açafrão
Flor do Açafrão

Semente de coentro

A semente de coentro era muito usada na antiguidade. Em 1983 arqueólogos encontraram um punhado delas enterradas há mais de 8.000 anos na caverna de Nahal Hemar, nas colinas do Mar morto, próximas a Israel. Também foram descobertas junto com ouro e joias na tumba do faraó egípcio Tutancâmon, associadas a promover uma boa vida após a morte. No livro de receitas da Roma antiga,De re coquinariaa semente aparece em diversas receitas, como lentilhas com castanhas e tutano. Aparece também em mais de 150 pratos no livro de receitas árabes mais antigo do mundo, o Kitab al-Tabikh, escrito por Muḥammad ibn al-Ḥasan, juntamente com cominho, gengibre e cardamomo. Com sabor doce, floral e levemente cítrico, combina muito com frango, porco, pato, cogumelos, couve-flor, batatas e é usada no estilo de cerveja Witbier (cerveja branca), juntamente com casca de laranja, trazendo a refrescância e perfume bem característico desse tipo de cerveja (como Vedett, Hoegaarden e Baden Baden Wit)

Canela

A canela é a casca interna de diversas árvores do estilo Cinnamomum, nativa do Sri Lanka. Os egípcios já a utilizavam para embalsamar seus mortos por conta de seu forte perfume. O imperador romano Nero queimou-a no funeral de sua segunda esposa Poppaea Sabina alegando que seu aroma tinha poderes purificantes. Na Grécia antiga, Heródoto conta a história de enormes aves que voavam carregando paus de canela para seus ninhos, bem longe do alcance humano. Para conseguirem a especiaria, deixavam enormes pedaços de carne de burro para que os pássaros descessem, pegassem a carne e deixassem cair o tempero. A canela aparece também nos escritos de Aristóteles, recomendada para uso no vinho, considerado por ele menos intoxicante quando misturados. Ela só se popularizou com a ida dos portugueses ao Sri Lanka em 1505 e teve seu monopólio pela Companhia Britânica das Índias Orientais até 1833. É doce, terrosa e causa aquecimento na boca. Combina muito com maçã, banana, amêndoas, chocolate, café, arroz, tomate, cordeiro e cebolas.

Cominho

O cominho foi uma das especiarias mais usadas na antiguidade. Os romanos o usavam no dia-a-dia e como disse o governador imperial romano Plínio, o Jovem (61 d.C. – 113 d.C.) “Mesmo se estiver cansado de todas as especiarias o cominho é sempre bem vindo”. O cominho era usado no Egito antigo, na Índia e na África, e hoje é característico de diversas receitas ao longo do mundo. No Irã é usado para preparar o típico tempero persa Advieh, no Afeganistão compõe o sabor do char masala, na índia e em Bangladesh são partes essenciais do famoso garam masala, e no norte da África é usado para o preparo da Harisa. Muito comum também na Holanda como tempero de queijos, na Alemanha para dar sabor aos picles e em Portugal aos embutidos. Mas seu uso mais comum e rotineiro está na culinária mexicana, que praticamente usa cominho para tudo – tacos, burritos, enchiladas, chillies, ensopados e carnes. Com sabor terroso, rico, levemente picante e agridoce, é muito usado para temperar feijão, lentilhas, arroz, cordeiro, frango, beterraba, abóboras, cenouras e por aí vai...

Semente de Mostarda

As sementes da mostarda (da família do brócolis, couve e repolho) tem sabor forte, intenso e picante . Era muito usada no Egito antigo para temperar carnes. No livro de receitas da Roma antiga “De re coquinaria” a semente de mostarda aparece em uma receita de molho, junto com cominho, funcho, mel e óleo, para acompanhar o javali assado no espeto. Na Inglaterra medieval faziam bolinhas de semente de mostarda com farinha, canela e óleo, secavam e guardavam, para consumir mais tarde com vinho ou vinagre. A semente de mostarda combina com carne, porco, frango, embutidos, peixes oleosos, ovos, batatas, alho poró, repolho, espinafre, alcaparra, mel e queijos.

Alcaparra

Os botões das flores da alcaparreira (Capparis spinosa) são nativos do Mediterrâneo, Sahara, norte do Irã e da Ásia central. Tem gosto semelhante ao da mostarda, intenso e quase picante. No Império Romano já era usada em conservas de sal e vinagre, assim como hoje em dia. Na Grécia antiga era consumido como calmante e era muito comum em carnes já não tão frescas por conta da falta de refrigeração - disfarçava o sabor da carne rançosa. Combina muito com peixes, frutos do mar, cordeiro, ovos, alcachofras, batatas, limão e anchovas.

Páprica

A páprica já era usada no México a mais de 6.500 anos. Muito comum também na Hungria e Turquia, foi conhecida como pimenta turca por muitos anos. Pode ser doce ou picante e sua versão defumada é originária da Espanha, na região de La Vera onde era seca com troncos de carvalho. Muito usada na culinária húngara, é a base de diversos pratos como goulash (foto), frango paprikash e carne pörkölt. Muito comum também na Índia com seus pratos coloridos, no Marrocos em tagines, na Turquia em cuscuz e na Espanha nas paellas, batatas bravas e principalmente no chorizo, que tem sua alma nesta especiaria.

Pimenta Caiena

A palavra caiena vem do Tupi “kyinha”, que significa pimenta ardida. Originaria da América do Sul e Central, hoje também é cultivada na África e na Ásia. Foi levada à Europa por Cristóvão Colombo, sendo rapidamente aderida como substituta da pimenta preta, que era cara por vir da Ásia. A caiena deve seu ardor ao composto capsaicina, que faz com que nosso corpo libere endorfina, trazendo sensações de bem estar. Era muito usada no café da manhã favorito da era vitoriana na Inglaterra, o “Devilled kidneys”, rins de cordeiro com molho inglês, pimenta caiena, mostarda e manteiga. Ela vai bem com porco, peixes, caranguejo, lagosta, tomate, milho, batata, arroz, massas e queijos.

Noz-moscada

Originária das Ilhas Banda na Indonésia, reza a lenda que marinheiros sentiam seu perfume do mar, antes mesmo de conseguir visualizar as Ilhas. Chegou ao império bizantino no século 6, e foi bastante comercializada pelos árabes na Idade Média, que conquistaram a aristocracia europeia com o sabor da especiaria. Em 1511 as Ilhas Banda foram anexadas ao território português e sendo a única produtora de noz-moscada do período, desencadeou uma longa batalha entre portugueses, holandeses e ingleses – o que resultou em escravidão e posteriormente no desaparecimento da população da Ilha. Com aroma que lembra pinheiro e sabor que é ardido como o cravo, a noz-moscada é usada em pratos doces e salgados como no molho bechamel, batatas gratinadas, drinks, curries e no tradicional americano eggnog. Vai muito bem com vitela, couve-flor, cenouras, batata doce, queijos, ovos, leite, espinafre, abóboras e misturado com baunilha.

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