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Writer's pictureKatherina Cordás

As deliciosas tanajuras paulistanas

Tempo de leitura: 5 minutos

“São Paulo antiga, a tanajura era ‘vendida em tabuleiros pelas ruas’, sendo iguaria apreciada tanto pelas camadas mais pobres quanto ‘pelas melhores famílias’. Mais tarde, estas últimas ‘só a comiam às escondidas’ [...]”. A formação da culinária brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira, Carlos Alberto Dória, 2014.
Ponte de Santa Ifigênia. Jean-Baptiste Debret, 1827
Ponte de Santa Ifigênia. Jean-Baptiste Debret, 1827

Há muitos anos, fiz um curso com a mexicana Lourdes Hernández sobre sabores e temperos mexicanos. Na época, estas coisas não estavam tão de moda e obriguei meu pai a ir comigo para ter um suposto cúmplice naquela aventura gastronômica – confesso que eu também era muito tímida nesta época e costumava sempre chamar alguém que falasse por mim.


Depois de uma super aula sobre a história da culinária de seu país, Lourdes propôs uma degustação de temperos e sabores às cegas, em que tínhamos que identificar os inusitados produtos mexicanos - ou pelo menos tentar. Pastas, ervas, pimentas, frutas e formigas - no caso uma gorducha com sabor incrível de mel. Até então, todos os insetos que tinha comido (não eram tantos assim), eram mais textura que sabor: grilos caramelizados no Azumi no Rio de Janeiro, aqueles pirulitos, caríssimos, transparentes com insetos dentro – eca. As entusiasmadas doses de tequila com escorpião, que tomava na adolescência em um mexicano no Jardins, quando ainda não tinha ressacas que duram eternidades.


O fato é que insetos sempre foram algo que me remeteram muito mais a locais como México ou Ásia do que ao Brasil, mesmo sendo algo que foi tão presente na nossa alimentação por muitos anos. Em outros tempos, por incrível que pareça, as formigas rolavam soltas nos cardápios da cidade de São Paulo, inclusive nas casas das famílias mais poderosas da região - até cair em desuso pela ignorância elitista do começo do século XIX, que queria ser “fina” e não “caipira” como eram chamados – mal sabiam que a comida caipira é a melhor que tem (ou será que sabiam?).

Palácio do Governo em São Paulo. Jean-Baptiste Debret, 1827
Palácio do Governo em São Paulo. Jean-Baptiste Debret, 1827

A formiga içá era parte da dieta cotidiana do paulistano até cerca de 1900. Conhecida como tanajura ou saúva, esta fêmea vive por todo continente americano há cerca de 50 milhões de anos. Esta formiga do gênero atta, além de ter um sabor explosivo de capim limão, era adorada nas mais diversas mesas do século XIX, herança da culinária indígena. O caviar tupiniquim, como chamou Neide Rigo, era algo tão característico das mesas paulistana que foi uma forma de identificação regional, sendo fácil reconhecer um paulista, no meio de outros brasileiros, por suas preferências alimentares. A iguaria era adorada em São Paulo e servida nas mais abastadas mesas: fritas, em farofas, doces...


Nas correspondências de Monteiro Lobato com o escritor mineiro Godofredo Rangel, entre 1903 e 1919 (que mais tarde virou o livro A Barca de Gleyre, 1944), o paulista conta que “o içá torrado é o que no Olimpo grego tinha o nome de ambrosia. Nós, taubateanos, somos comedores de içás. Só um ser Onipotente e Onisciente poderia criar semelhante petisco”.

O viajante Charles Frederic Hartt, também escreveu em 1865 uma descrição do içá em seu livro sobre o Vale do Amazonas: "A senhora tomou a formiga da bacia, tirou-lhe a cabeça e comeu-a com evidente prazer. Assim animado, eu segui o seu exemplo, e quando o inseto ficou esmagado entre meus dentes, a minha boca foi invadida por um sabor um tanto forte de especiaria, assemelhando-se um pouco ao cravo. O sabor picante torna completamente impossível o uso da saúva para outro fim que não seja o de especiaria ou condimento (...) Se os camarões são bons para alimento, porque não o seriam também as formigas”.


Com a inauguração do curso de direito no Largo São Francisco em 1828, estudantes do Brasil inteiro vieram para São Paulo, mudando o ritmo da cidade de forma permanente. Com eles, novos hábitos e lugares surgiram para atender suas demandas, como as casas de bilhares, tavernas e botequins, além de estalagens, pensões e, claro, bordéis, feitos para receber os jovens que agitaram as noites tranquilas da São Paulo de então.

Faculdade de Direito do Largo de São Francisco
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco
Em meados do século XIX o desenvolvimento urbano no Rio de Janeiro era gritante comparado a São Paulo, fortificando este sentimento de província aos acostumados aos centros mais desenvolvidos e requintados “a pequena e atrasada cidade que era o São Paulo das rótulas, das mantilhas e das formigas saúvas”, como disse o político Almeida Nogueira (1851-1914). O Dramaturgo Martins Pena (1815-1848), considerado o introdutor da comédia de costumes no Brasil, também citou os paulistanos como comedores de formigas, em uma de suas obras em que o personagem Marcelo era apelidado de “Papa Formigas”, por ter nascido em São Paulo.

Entrada da baía e da cidade do Rio de Janeiro a partir do terraço do convento de Santo Antônio, Nicolas Antoine Taunay, 1816.
Entrada da baía e da cidade do Rio de Janeiro a partir do terraço do convento de Santo Antônio, Nicolas Antoine Taunay, 1816.

Esta gana paulista de ter a boa fama da requintada capital do império, fez com que a formiga passasse a ser considerada comida de caipira, não conivente com a modernidade que desprezava hábitos indígenas e enaltecia costumes e alimentos europeus, tidos como civilizados e sofisticados. Mas a verdade é, meu amigo, que gosto é algo que não cede a modismos e preconceitos. Quem gosta, gosta! Por isso, dizem que os amantes da formiga da época não resistiram a abstinência imposta e passaram a comê-la escondida, na calada da noite, mantendo o prazer do petisquinho sem perder o suposto glamour europeu nas aparências.


No mesmo período, os primeiros imigrantes chegaram à cidade, abrindo cafés, hotéis, fábricas de alimentos, como gelo e cerveja, além de chácaras com plantações ao redor da cidade. Entre estes europeus vieram chefs de cozinha, padeiros, confeiteiros e mestre cervejeiros que começaram a vender seus produtos, crescendo a gama de opções gastronômicas na cidade e aumentando a busca por produtos europeus considerados refinados.

Praça Quinze, Jean-Baptiste Debret, c.1827.
Praça Quinze, Jean-Baptiste Debret, c.1827.

Içá na lata. Coluna Nhac, Paladar 2014
Içá na lata. Coluna Nhac, Paladar 2014

É impressionante como vivemos o reflexo desta castração dos sabores brasileiros até hoje. Como algo que antes era corriqueiro, por modismos de uma época tornou-se extremamente exótico, sumindo das nossas mesas, do nosso imaginário e do nosso cotidiano. Comer formiga? Claro, através do apelo gastronômico e de uma imersão cada vez maior de chefs e pesquisadores sobre produtos brasileiros, a formiga está pelos restaurantes de São Paulo, perfumando as bocas dos paulistanos com os sabores das nossas origens. Mais legal que isso: ela faz parte da cultura do Vale do Paraíba, onde caçar e comer içás é um acontecimento nas cidades. Ouvi dizer que a cidade de Silveiras, no interior de São Paulo, é conhecida como a capital dos Içás, e que tem até o Festival dos Içás todo o ano!


No nosso cotidiano urbano, porém, ela ainda é estranha e nada usual. Em pouquíssimo tempo nossos costumes e sabores foram sendo perdidos pelos preconceitos das sociedades de diferentes períodos, que ditam nossos gostos e preferências. É mais um reflexo do que Nelson Rodrigues chamou de “Complexo de Vira-Lata”: a subalternidade dos brasileiros em relação ao que é estrangeiro. E nós, mesmo que com passos de formiga, temos o dever de resgatar a cultura e os sabores de nossos ancestrais.

Morador de Silveiras comendo Içá. Foto: Raul Zito
Morador de Silveiras comendo Içá. Foto: Raul Zito

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