Tempo de leitura: 4 minutos. Uma pesquisa recente mostrou que o brasileiro está comprando menos açúcar. Segundo dados da Kantar Worldpanel 389 mil famílias , no Brasil, deixaram de comprar açúcar refinado, uma iguaria presente em 51,8% dos lares no país. Motivo para se comemorar, afinal é sabido que o corpo reage negativamente a ingestão de açúcar.
Tenho que confessar, porém, que sempre fui uma grande fã deste maravilhoso cristal comestível. Nunca cheguei a abusar dele, pelo menos gosto de pensar assim. Me lembro em 2011 quando fui morar em Milão, meu pai, que estava em um congresso lá perto, passou para me visitar e deu aquela forcinha paterna lotando minha minúscula dispensa de comidas "absolutamente" necessárias: arroz, temperos, macarrão, sal e açúcar – um saco enorme de 5kg de açúcar! Lembro de pensar, “que horror, jamais vou comer tudo isso de açúcar” e meu pai com mentalidade de grego exagerado, “é melhor sobrar que faltar”. Tinha certeza que isso iria acontecer, afinal, só tomava 1 colherzinha rasa no café, nada grave. Alguns meses se passaram, menos do que gosto de admitir, e aquele maldito saco acabou. No dia que raspei aquele papelão italiano melecado decidi que nunca mais tomaria café com açúcar – que susto foi ver que havia consumido tudo aquilo! Que benção este episódio porém, café com açúcar se tornou hoje em dia intragável para mim – e viva os cafés especiais que pipocaram por São Paulo.
No quesito doces, porém, sou formiga e tenho que admitir, sugar-high sempre foi meu tipo de droga. Não me entenda mal, gosto de açúcar em moderação. Nada daqueles doces enjoativos ultra açucarados. Dominar a arte de se trabalhar o açúcar na medida certa é para poucas mãos abençoadas de cozinheiros, confeiteiros e padeiros que trabalham esta matéria prima com maestria quase nipônica.
Mas o açúcar, antes de se tornar vilão, já foi sinônimo de status. A cana surgiu na Ásia e os chineses a usavam há mais de 5 mil anos como alimento, tentando diversas vezes solidificar ao sol o caldo desta gramínea sem obter muito sucesso. Foi apenas na Índia do século V que o néctar extraído da cana foi finalmente transformado em pequenos grãos recebendo o nome de çarkara, em sânscrito, areia grossa - origem da palavra açúcar (em árabe as-sukkar). Quando os árabes chegaram na Índia no século VII desenvolveram um novo processo de fabricação desta maravilha e a levaram para o Oriente Médio, que através das cruzadas, chegou à Europa e virou um artigo de luxo. Como o cultivo da cana na Europa era extremamente difícil pelas condições climáticas, o açúcar se tornou uma iguaria rara e ganhou status, sendo considerado um alimento de prestígio, caro, desbancando o mel, o queridinho da época. Por isso ficou conhecido como o “mel que não precisa da ajuda de abelhas”, segundo Nearchos de Creta, um comandante de Alexandre o Grande.
Ouviam-se na época histórias dos grandes banquetes no Oriente Médio em que se usava açúcar como decoração. Segundo o poeta persa Nasir Khusraw, um jantar na corte do Cairo no ano 1040 era decorado com mais de 70.000 quilos de açúcar, usados para criar os mais diversos tipos de ornamentos ao redor da mesa: árvores de laranja, 157 estátuas e 7 modelos de palácios. Outra lenda que deu inveja nos europeus da época foi a cerimônia de circuncisão do filho do Sultão Murade III do Império Otomano que, em 1582, enfeitou o evento com centenas de girafas, elefantes, leões, castelos e fontes, em tamanho real, feitos de açúcar e tão pesados que tiveram de ser carregados por centenas de pessoas.
Os europeus com dor de cotovelo não podiam fazer feio. Desde o século XVI os casamentos, batizados, aniversários e acordos políticos eram comemorados em grandes banquetes onde se esbanjava comida em mesas de mais de 30 metros de comprimento, enfeitadas com esculturas "bem basiquinhas" de açúcar nas mais diferentes temáticas: anjos, princesas, castelos, paisagens, cenas bíblicas, mitológicas, ornamentais, animalescas e até fantasiosas. Um tapa na cara dos convidados – sinônimo de muita, mas muita riqueza e poder. Estas esculturas eram feitas de uma espécie de pasta americana, uma mistura de açúcar com uma goma natural, moldada posteriormente em grandes matrizes de madeira.
A festança do casamento do rei Henrique IV da França (1553-1610) com sua segunda esposa, a italiana Maria de Medici (1575-1642) em 1600, teve as mesas decoradas com as trionfi di zucchero, figuras de açúcar criadas por artistas de renome que, segundo Areovaldo Franco em seu livro "De Caçador a Gourmet", provavelmente foram as precursoras das estatuetas de porcelanas para decoração de mesas. As esculturas incluíam, além dos 12 trabalhos de Hércules, uma escultura do próprio rei que, por incrível que pareça, não chegou a comparecer ao próprio casamento.
Um dos grandes mestres do açúcar de todos os tempos foi o cozinheiro Antonin Carême (1784-1833), conhecido como o cozinheiro dos reis. Carême foi uma grande celebridade da época, disputado por políticos, chefes de estado e banqueteiros. Tinha como sua especialidade extraordinários doces esculpidos com açúcar que causavam diferentes emoções aos comensais. Suas esculturas eram tão complexas que eram comparadas às maiores obras arquitetônicas do período. Certa vez, em meados de 1811, foi encomendado a Carême o bolo do batizado de Napoleão II, em forma de gôndola veneziana. O doce representava a consolidação da relação política entre a França de Napoleão Bonaparte e do império dos Habsburgo, casa de Maria Luísa sua mulher. Em uma receita de bolo, Carême, ensina que este, feito de massa de confeiteiro, devia ser inteiramente coberto com glacê de açúcar e adornado com oito colunas de glacê rosa, coberto por cortinas azuis e amarelas de glacê e finalizado com fios de açúcar branco, que imitavam ondas do mar, sobre suspiros recheados de creme e açúcar cristal, na forma de conchas. Este, até para uma formiga como eu, já me embrulhou o estômago.
A vilanização do açúcar está cada dia mais latente, e com razão. Os substitutos para o doce surgem aos montes como soluções para ninguém sofrer com isso: mel, stevia, melado, tamaras, xylitol, agave... Eu particularmente sou apaixonada por mel, e vivo tranquila bebendo desta fonte. Isso me fez lembrar o maravilhoso mel de jataí que tenho guardado no armário (a 7 chaves, diga-se de passagem), que será devorado de colher agora mesmo, após essa imersão neste mundo açucarado. E viva as abelhas tão trabalhadoras, criadoras desta maravilha melosa que só nos traz benefícios desde os primórdios da história.
Jataí, abelhas nativas brasileiras sem ferrão (foto dailymotion) e o Mel de Jataí da Mbee
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