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Writer's pictureKatherina Cordás

A lingua de US$ 15,5 milhões e como sentir o real sabor das coisas

Updated: Oct 2, 2018

tempo de leitura: 3 minutos.


Para alguns filósofos da antiguidade, um bom olfato era sinônimo de boa reputação. Dizem que Demócrito (460-370 a.C.) era capaz de distinguir uma mulher virgem apenas pelo cheiro, ao caminhar pelas ruas de Abdera com seu nariz treinado. Gregos, egípcios e romanos eram grandes apreciadores de perfumes e constantemente queimavam resinas que exalavam aromas doces nos mais diversos banquetes, teatros, jogatinas e ate mesmo na cama.


O Triunfo de Baco. Diego Velázquez
O Triunfo de Baco. Diego Velázquez, 1626–1628

O olfato é um sentido que precisa de treino. Desde criança tenho um nariz bastante talentoso - não que isso seja algo tão benéfico em uma cidade como São Paulo que definitivamente não é um mar de rosas. Provavelmente esta capacidade vem, além do tamanho do nariz, de uma enorme curiosidade que tinha por um livro do meu pai Le Nez du Vin. Aquilo era uma coisa de louco, um kit com 54 mini garrafas perfumadas com as principais fragrâncias do vinho e cartas com suas explicações, perfeito para as crianças jogarem um quiz um tanto sofisticado, algo que deixava meu pai bastante nervoso.

Livro Le Nez du Vin, que conta com os 54 aromas mais presentes no vinho | Éditions Jean Lenoir
Livro Le Nez du Vin, que conta com os 54 aromas mais presentes no vinho | Éditions Jean Lenoir

Li há alguns anos sobre o homem com a língua mais cara do mundo. O provador de cafés Gennaro Pelliccia, da rede inglesa Costa, tem sua língua assegurada em 15,5 milhões de dólares! Segundo ele "sua língua é comum", mas os diretores da empresa resolveram garantir o órgão quando, depois de uma pesquisa, constataram que sete em cada dez pessoas preferiam o blend desenvolvido por Pelliccia.


Por mais curioso que seja, o que realmente me chama atenção nesta história é que, os ingleses, asseguraram a parte errada do corpo do precioso provador! Se queriam garantir os sabores que Gennaro sentia, deveriam ter assegurado seu nariz...

Gennaro Pelliccia do Costa Coffee
Gennaro Pelliccia do Costa Coffee | Foto: Instagram @gennaropelliccia

O sabor que sentimos na boca é uma junção de gostos, aromas e sensações.

O gosto – o que sentimos na língua - corresponde a 20% do sabor.

As sensações que vem à boca - como texturas e temperaturas - representam apenas 10%.

O que realmente influencia nossa percepção é o aroma.

Quando comemos ou bebemos algo, 70% do aroma deste alimento sobe pela nossa retronasal criando uma enorme gama de identificações e percepções de sabores. É por isso que quando estamos resfriados temos a sensação de não sentir o sabor da comida.


É sabido que degustar vinhos é uma das melhores formas de entender as camadas de sabores de uma bebida. Mas poucos sabem que a degustação de uma boa cerveja também serve muito bem a este papel.


Para perceber a complexidade dos sabores nada melhor do que beber duas cervejas bastante opostas em intensidades de gostos e aromas. Separe duas cervejas: a primeira de corpo leve, refrescante, como uma belga de trigo, com baixo amargor e acidez média. Recomendo a cerveja Vedett (Wit Beer / 4,7%), que possui aromas bem presentes e identificáveis.


A segunda deve ser alguma mais complexa, encorpada, licorosa, com aroma e sabor bem tostado, como uma Stout. Recomendo a cerveja brasileira Wäls Petroleum (Russian Imperial Stout / 12%).

Antes de beber sinta o aroma de cada cerveja, e depois beba tentando identificar os gostos que elas têm na língua, as sensações que elas trazem à boca, e os novos cheiros que se formam depois do primeiro gole.


A Vedett com seu sabor condimentado, de semente de coentro e cascas de laranja em contraste com a Wäls Petroleum que tem forte aroma de malte torrado, café e chocolate amargo, muito mais intensa e perfumada.

Gerard Ter Borch. Woman Drinking with Sleeping Soldier, 1660
Gerard Ter Borch. Woman Drinking with Sleeping Soldier, 1660

Depois de beber, o aroma se modifica e muitas vezes fica bastante diferente de antes do primeiro gole. Se sentíssemos apenas o gosto das coisas, sem o aroma, perceberíamos apenas doce, amargo, salgado, ácido e umami (o quinto gosto, segundo S. Yamaguchi "O umami possui um gosto residual suave, mas duradouro. Ele induz a produção de saliva, além de uma sensação aveludada na língua; pode estimular a garganta, o palato e a parte de trás da boca").


O aroma desperta as memórias e as identificações, capazes de nos fazer sentir sabor de banana em uma cerveja feita apenas de água, malte, lúpulo e levedura. Treine o olfato, sinta o cheiro de tudo! Quanto mais você cheirar as coisas, mais aromas vai sentir e consequentemente, vai poder desfrutar de muitos mais sabores.

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